Há dois anos, a forte contração do crédito escancarava a gravidade da crise financeira e renovava o interesse pelas ideias de um dos mais importantes economistas americanos.A presença de Minsky
Por Márcia Pinheiro, para o Valor, de São Paulo - 31/07/2009
Imagine-se o mundo sem bancos centrais. Sem o Federal Reserve. Não haveria políticas monetárias. Não teria havido Alan Greenspan, que não teria mantido os juros baixos por um tempo talvez excessivo. Wall Street não teria feito a festa especulativa que fez. Não teria acontecido o grande "boom" imobiliário americano, nem a crise dos empréstimos "subprime". E Hyman Philip Minsky (1919-1996) não teria o que fazer, com seus escritos, como explicador da desestabilização financeira que virou a economia global de pernas para o ar. Não se teria falado, portanto, em "Momento Minsky", como ficou conhecido aquele ponto em que se dá a virada da bonança em mercados financeiros movidos a crédito fácil para o pânico em que ninguém quer emprestar para ninguém e os ativos passam a valer tanto quanto pó. O fato é que em agosto, mesmo que muita gente admiradora dos mercados absolutamente livres fique contrariada, não faltará quem lembre que, nesse mês, em 2007, o Momento Minsky estava em sua plena exposição de realidade keynesiana.
O mês é o de preferência de Paul McCulley, diretor-gerente da Pacific Investment Management Company (Pimco), que criou a expressão Momento Minsky em 1998, durante a crise da dívida russa. Mas ele admite que também se poderá encontrar o Momento Minsky um tanto antes ou depois. O economista André Luís Cabral de Lourenço, professor da UFRN, estudioso da Hipótese de Instabilidade Financeira, desenvolvida por Minsky, acha que agosto de 2007, quando a crise se tornou mais evidente, com violenta contração do crédito, pode ser uma escolha, mas também entende que se podem ver vários Momentos Minsky e que talvez seja mais apropriado falar em um contexto ou em um cenário Minsky (ver pág.14).
Depois de anos em que suas ideias tiveram pouco destaque, Minsky voltou a ser mencionado em artigos e conferências. Recentemente, durante o seminário "Bancos Públicos - Financiamento ao Desenvolvimento e Regulação Bancária", organizado pelo Valor, o presidente do BNDES, Luciano Coutinho, também professor da Unicamp, citou Minsky várias vezes, ao comentar as origens e os desdobramentos da crise financeira americana, e defender a ampliação dos poderes dos bancos centrais e da regulamentação geral dos sistemas financeiros como forma de evitar a formação e a expansão de bolhas especulativas, até onde possível (a propósito: Minsky não via a ação estatal como capaz de estabilizar definitivamente a economia capitalista).
Sergio Lima / Folha
Barbosa, da Fazenda: o grande mérito dos economistas agora lembrados foi trazer as questões do conflito distributivo de volta à pauta das políticas públicas
Minsky é um dos pensadores mais caros aos economistas não ortodoxos. Nascido em Illinois, obteve graduação em Ciências na Universidade de Chicago, mestrado e doutorado em administração pública em Harvard, onde foi discípulo de Joseph Schumpeter e Wassily Leontief. Ensinou nas universidades Brown, da Califórnia e Washington. Aposentado em 1990, continuou a escrever e a lecionar no Levy Economics Institute. Do mestre Keynes, Minsky fez uma releitura criativa em seu livro "John Maynard Keynes" (1975), no qual propõe uma nova interpretação de questões relacionadas ao investimento, de inspiração keynesiana, mas com maior ênfase nos fatores determinantes de caráter financeiro. É nesse livro, aliás, segundo Lourenço, que ganham maior consolidação as bases teóricas essenciais da Hipótese de Instabilidade Financeira desenvolvida por Minsky.
Em outro economista americano também "redescoberto" por causa da crise, Irving Fisher (1867-1947), contemporâneo e amigo de Keynes (que o chamou de "bisavô" de suas próprias ideias), não é difícil encontrar similaridades com as análises de Minsky a respeito da instabilidade financeira que seria inerente ao sistema capitalista. Um pouco mais distante, mas também sugerindo premissas a Minsky, está o polonês Michal Kalecki (1899-1970).
Anna Carolina Negri / Valor
Coutinho, do BNDES, toma Minsky como paradigma teórico para defender ampliação do poder dos bancos centrais e da regulamentação dos sistemas financeiros
Minsky começou a frequentar as colunas de formadores de opinião, com mais assiduidade, no ano passado. Em setembro de 2008, Martin Wolf, o principal comentarista econômico do "Financial Times", sustentou que Minsky sempre esteve certo em sua análise da instabilidade da economia. "Um longo período de rápido crescimento e juros e inflação baixos levaram a grande complacência e vontade crescente de se tomar riscos", escreveu Wolf.
Minsky foi um seguidor "fenomenal" de Keynes na área macroeconômica, segundo Nelson Barbosa, secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda. O argumento mais importante de Minsky, que revela toda sua atualidade, é "a concepção do processo de fragilização dos sistemas financeiros", diz Fernando Cardim de Carvalho, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Para Minsky, as distorções que engendram crises são geradas espontaneamente pelos mercados, mais especialmente nos períodos de maior prosperidade.
É a "estabilidade instável". Ou seja, a experiência de estabilidade faz com que os agentes privados se tornem complacentes e diminuam as margens de segurança em suas transações, expondo-se cada vez mais a riscos. Por isso, até mesmo um pequeno choque é suficiente para fazer o castelo de cartas desmoronar. "Uma dimensão central dessa complacência é a disposição de se expor ao risco dos juros, fazendo dívidas de curto prazo para a aplicação em ativos de longo prazo, com ganhos nos 'spreads' da curva de rendimentos", diz Carvalho. Está dada a receita do colapso: com o aumento da alavancagem, mesmo pequeno choques adversos são fatais.
O grande mérito desses pensadores - Keynes, Minsky, Fisher, Kalecki - foi trazer de volta o conflito distributivo à pauta das políticas públicas, afirma Barbosa, da Fazenda. Houve uma revitalização da economia política. "Não basta controlar a inflação. Passou-se a discutir não se o Estado deveria investir, mas quanto", diz o secretário.
Barbosa bate na tecla que não há modelo único. "Os arranjos possíveis são múltiplos. Claro que nem todos são de equilíbrio. Mas não é possível mais pensar que exista só um PIB potencial ou um determinado nível de juros."
Conselheiro informal do presidente Lula, Luiz Gonzaga Belluzzo diz que a obra de todos esses economistas constitui o repertório anticíclico. "Há a percepção de que a economia capitalista se move em torno de um mercado complexo e a ação pública é redutora da complexidade", afirma. Belluzzo não descarta que o pensamento conservador ressuscite, por ter uma plateia numerosa e influente. "São os mesmos que em crises bradam para que sejam salvos pelo Estado."
A tendência de recuperação do papel do investimento público foi nítida desde a primeira gestão do presidente Lula. "Não se limita à política anticíclica, mas estrutural", alerta Belluzzo. Por muito tempo, esse papel no Brasil foi desempenhado pelas estatais. Hoje, o orçamento é a ferramenta principal. "É um equívoco sustentar que o investimento público afugenta o privado. São complementares. Em vez do 'crowding out', deveria prevalecer o 'crowding in' keynesiano."
Leda Paulani, professora da Universidade de São Paulo (USP), vai mais longe. Além de Keynes, ela diz que houve uma necessária, ainda que tardia, revisita aos escritos de Karl Marx. Não por acaso, "O Capital" foi reeditado na Alemanha e rapidamente sumiu das prateleiras. É de Marx a constatação de que a economia capitalista se move por crises.
O pensamento de Marx não é para se por em prática. É um instrumental de análise. Seus textos são excelentes fontes para o diagnóstico de como as situações de crise são geradas, diz Paulani. Já Keynes e Minsky são um prato cheio para os administradores públicos, por não economizarem em receitas de políticas econômicas, para manter o pleno emprego de recursos, com o controle das atividades financeiras.
A professora diz que a redescoberta desses autores, tão benquistos pelos economistas denominados desenvolvimentistas, não deveria causar espanto. "Os Estados Unidos praticam o keynesianismo há uma década. As medidas de [Barack] Obama apenas explicitaram o caráter intervencionista do governo americano na economia." Segundo Leda, no Brasil, as pontas mais visíveis do pensamento do autor da "Teoria Geral" são o Programa de Aceleração Econômica (PAC) e o pacote de estímulo à construção, pelo forte efeito multiplicador no nível de emprego.
Para Simão Silber, da Universidade de São Paulo (USP), seguidor de outras paragens conceituais, o grande nome pouco lembrado atualmente é Irving Fisher, que tem uma explicação alternativa à de Keynes sobre a crise. "Ele explica a crise pela deflação de ativos e aumento real das dívidas." Mesmo com juros nominais próximos de zero, a crise de crédito manifestou-se abertamente nos Estados Unidos 2008, da mesma forma que em 1933.
De acordo com Silber, ao contrário do cardápio keynesiano, o fisheriano sustenta que de nada vale a política fiscal. A ordem para evitar o pior é não deixar os preços caírem, sanear o sistema financeiro e reduzir dramaticamente a concessão de crédito, para que a recessão não se aprofunde.
Alargando o leque da literatura, Barbosa, da Fazenda, reintroduz os autores que fizeram a ponte entre a economia e a psicologia. Seus favoritos são Herbert Simon, Daniel Kanehman, Robert Shiller e Matthew Rabin, que, grosso modo, defendem que a rotina da satisfação pode superar, na dinâmica da economia, a maximização do lucro. "Não há mais o predomínio das expectativas racionais. Os objetivos hoje são fundamentalmente do bem-estar aliado às decisões econômicas."
Belluzzo enxerga algum avanço, mas não muito, no governo Lula em direção às políticas não neoliberais. No primeiro mandato, houve uma sensível redução da vulnerabilidade externa do país, "ajudada pelas mudanças estruturais no mundo". Segundo o economista, o trabalho "foi muito bem feito e até o conservadorismo do Banco Central contribuiu para a maior solidez".
As políticas sociais compensatórias, como o Bolsa Família, foram outro grande passo adiante, na visão de Belluzzo. Ele nota que tais práticas foram criticadas tanto pela direita como pela esquerda, uma vez que, para estes últimos, somente a criação maciça de empregos resolveria a questão social. Por fim, com o PAC, vê-se uma recuperação do papel do investimento público.
Em que pese a volatilidade do "in and out", sobe e desce, quando se trata de economia, o fato é que os pensadores contemporâneos estão mais afeitos a políticas que combinem o que de melhor a história do pensamento econômico produziu. Atualmente, há um outro consenso latente, ainda sem nome, uma vez que governos e instituições multilaterais têm convergido para uma visão mais intervencionista e menos ideológica a respeito das virtudes do mercado.
Hoje, a bíblia é outra: "Uso mais agressivo de políticas fiscais para sustentar a demanda agregada, lançar mão de meios não convencionais para expandir a liquidez da economia e endurecer a regulação financeira, pois a hipótese dos mercados eficientes, tão cara ao pensamento mais ortodoxo, levou ao desastre", sintetiza Cardim, da UFRJ. Do lado neoclássico, dito ortodoxo, afirma-se o contrário: a crise aconteceu por que o governo americano, via Fed, interferiu no que seria a dinâmica natural dos mercados, facilitando a especulação e a expansão da grande bolha financeira.
O fato é que boa parte das posições reformistas têm-se originado nos Estados Unidos, o que não é pouca coisa. Ainda vai demorar para o mundo assistir ao decantado declínio do império americano. Profecia improvável, aliás. O país continua a ser o paradigma fundamental quando o assunto é economia, para o bem ou para o mal.